- Que lhe sugere a palavra caridade?
- É uma palavra que me não lembro de ter escrito fosse onde fosse - porque as palavras significam, não é verdade? Na noite espessa da nossa aflição, elas são música e silêncio do próprio desejo, nossa única pátria. Mas são também a pedra infinitamente morta sobre o coração de tanta criatura. Caridade é uma palavra de flancos frios e águas estanques. Conduz sem grandes desvios ao mundo pantanoso e pervertido da repressão, onde a consciência que se diz virtuosa mais não faz que servi-lo, desinteressada como está em que a potencialidade humana se afirme em todo o seu esplendor. Se os dias todos que nos restam na terra já não chegam para chorarmos a sistemática amputação do homem, um tal vocábulo, aliado como anda sempre às formas mais estremes de reaccionarismo, não pode deixar de suscitar indignação e revolta. Por muito puras que sejam algumas almas evangélicas, parece-me que mais não conseguem que tapar Ariel e Caliban com a mesma manta rota. Mas eu suspeito que há ainda quem use a caridade como sedativo, ou simplesmente como investimento: o mundo do capital não podia perder a ocasião, ao proteger os seus pobres, de investir neles «a salvação da alma». Porque também esta gente aspira à eternidade!
Eugénio de Andrade, in Rosto Precário
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