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sábado, 9 de julho de 2011

Mulher ao Espelho (Séc. XIII)


A beleza não é lugar de perfeição.
Quando te vês ao espelho é a morte
que contemplas na sua chama. Mesmo o sol
que nos teus cabelos tanto aquecia
as mãos daqueles a quem davas o calor
mais íntimo é agora um lugar frio.
Não digas que não és a culpada: a traição
morava contigo, e sempre os homens,
sejam reis ou pastores, foram brutais
no seu desejo, como se amar uma mulher
não fosse o seu desígnio mais fundo
e apenas vingassem nela uma ferida oculta.
Não te escondas para chorar no escuro.
De nada te servem lágrimas agora
nem a lembrança furtiva das noites
abertas à demência, ao vigor, à raiva
de membros que ao rasgar-te a carne
te convertiam em sucessivas vagas
de luminosa sombra prolongadas.
Tu, coroada pelo amor de um rei,
já não despertas mais que piedade,
se tão cruel veneno pode ter um nome.
Estás só na casa imensa. Só e velha.
Escuta, são as pombas que regressam;
um ar fresco do sul varre o balcão,
traz sílabas leves, feitas de memória:
«Muito me tarda o meu amigo, muito me tarda.»
Fecha as portadas. Agora dorme. Dorme.

Eugénio de Andrade, Homenagens e Outros Epitáfios, (1985)


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