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domingo, 6 de março de 2011

Dogmas




" Vês?" - apontava ele para o horizonte longínquo." não, tu não podes ver!, à tua compreensão só pode chegar a percepção dos objectos que os teus misérrimos sentidos te apresentam e tal como eles te os apresentam. Lês isso em qualquer cartapácio de Filosofia.
" O bom do Kant passou a vida a pregá-lo. O que os dedos tacteiam são as ilusões dos teus olhos e dos teus ouvidos. Árvores! Que são árvores?... Pedras? Poeira? Que é isso? É o mundo!... E tu vês o mundo! Os homens criaram o mundo! De uma árvore fizeram uma floresta, de uma pedra um templo, deitaram-lhe por cima um pozinho de estrelas, e pronto... fizeram o mundo! E não há árvores, não há pedras e não há florestas, nem há templos, e as estrelas não existem. Não há nada, digo-te eu. Tu não sabes nada. Os mortos é que sabem. Os vivos chamam-lhes sombras. Os vivos metem as sombras dentro de um caixão, fecham-no à chave, pregam-no bem pregado, soldam.no, afundam-no na terra, muito fundo, e a sombra lá vai... fica o resto. São eles que por aí andam, são eles que tu sentes. Não há árvores, não há pedras, não há nada: há mortos. Os mortos é que fazem a vida; dentro dos túmulos não há nada. Eu queria agora dizer-te o que vejo, o que os mortos vêem, mas não posso. As palavras não vão além do que tu vês e ouves; as palavras são túmulos: estão vazias. Olha," - e apontava as primeiras estrelas que se acendiam na abóbada do céu, - "aquilo são estrelas, dizem os homens... e porque não há-de ser o pó doirado que tombou de uma grande asa de borboleta? Eu queria dizer-te agora o que é a vida dentro do mundo. Os mortos sabem. Eu sei. Os mortos poisaram as pontas das suas miríades de dedos sobre os meus olhos, enterraram-nos para dentro de mim, e mandaram-me ver... eu vi. Aparecem, de séculos a séculos, vivos que vêem. Os homens chamam-lhes santos, profetas, artistas, iniciadores. Os homens escrevem em léguas e léguas de traços e borrões as suas histórias... e e explicam-nos, comentam-nos, decifram-nos! Oh, miséria, deixa-me rir! Joana d' Arc...Pascal...Savonarola... João Huss... Vinci... Oh, miséria! Tu vives, mas não sabes a vida. Estes sabiam-na, mesmo com os olhos fechados, mas dentro da vida. Ou outros mortos também a sabem. Olha", - e, arrancando abruptamente um cacho de lilás, deu-mo a cheirar, - " é perfume! A vida é este cacho de lilás... Mais nada... O resto é perfume..."
- O resto é perfume... - repetiu lentamente a minha amiga, olhando o mar que as primeiras velas sulcavam.
E, mãos no regaço, vi-a pela primeira vez imóvel, esquecida de mim e de tudo.


Florbela Espanca, in As máscaras do destino- contos

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