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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Pressão



Conhecia-se.
Sempre lidara mal com a pressão, tanto com a atmosférica, como a psicológica. Sobretudo com esta.
Muitos gritos, muitos ralhos, muita música e barulho, muita confusão, sempre tinham tido o efeito de a gelar por dentro. E sentir desejos de afastamento, de fuga.
Habituara-se a escutar o silêncio.
Não tinha receio da trovoada, nem de ruídos naturais, desde que lhes conhecesse a proveniência. Mas o desequilíbrio individual, ou generalizado, característico de situações de crise ou de festa, horrorizavam-na de tal modo que o stress era inevitável e breve redundava em doença que, algumas vezes, precisava mesmo da intervenção de um clínico.
Era pior quando não podia lutar contra e tinha que aceitar. Aí ficava de mãos manietadas perante os acontecimentos, quaisquer que fossem.
Recordava-se de que sempre fora assim.
Teria pouco mais de quatro anos, quando fora metida numa sala de aulas de um colégio da cidade para educação de meninas. Recordava o bibe de xadrezinho preto e branco que a mãe lhe fizera e que tinha a obrigação de não sujar, assim como do laçarote branco que lhe era colocado logo de manhã no alto da cabeça. assim como recordava a professora, sempre embrulhada num xaile de lã e sentada atrás de enorme secretária donde se recordava de nunca a ter visto levantar: estava sentada quando se entrava na sala e lá ficava quando se saía. E também do seu ar triste e friorento. Porém, era exigente quanto às tarefas que mandava executar às alunas de idades variadas que segredavam umas com as outras enquanto desenhavam letras e algarismos.Ou faziam cópias. Ou resolviam contas e tiravam a prova dos nove.
A pressão sobre ela, provinda da professora e das colegas, colocara-se-lhe aquando do aprendizado dos números. Os seus deditos não conseguiam desembaraçar-se das esquinas do cinco... Não havia maneira de acertar com aquela curva e a professora já falava em castigos, como a privação do recreio, que acontecia durante um quarto de hora a meio da manhã, ou a meio da tarde.
Lembrava-se de estar já farta de se esforçar em vão e das palavras pouco simpáticas da Dona Idalina acerca daquele arrevezado algarismo cujas voltas não conseguia desenhar com a perfeição requerida: o mais agradável à vista que conseguira lembrava um enforcado com a gravata ao vento.
Mas ficava triste. Ralhos em casa, ralhos no colégio, davam-lhe vontade de fugir, de se libertar de qualquer jeito.
Pediu nessa manhã para ir à casinha e, dada a sua pouca idade, uma criada conduziu-a às casas de banho do rés-do-chão, altas, estreitas e escuras. A pequenita levantou a pequena aldraba de ferro pintada de cinzento duma das portas e sentou-se na borda da pia. E deixou-se ficar, finalmente em paz, finalmente sossegada.
Nessa manhã, perante a sua recusa em abrir a porta do cubículo escuro onde voluntariamente se encerrara, a confusão foi generalizada por causa de uma garota fechada numa casa de banho, com adultos e crianças a tentarem tirá-la de lá. Mas tudo para aquela criança fora mais suportável do que os comentários monótonos e depreciativos da professora, ou o escárnio das colegas, todas mais velhas do que ela.
Informados, os pais tinham-se zangado muito com a atitude que ninguém conseguira explicar e que a maioria tomara à conta de travessura. E nem se lembrava se tinha sido bem sovada pela mãe em casa como era habitual. Como quando se lembrava de fugir para casa das coleguinhas sem avisar, ou fugia para o jardim próximo para ver os peixinhos vermelhos nadarem no lago redondo com repuxo no meio, e fazia andar meio mundo à sua procura.
Não. Dessa vez nem sentira em casa uma pressão maior da que a que era habitual. Só se recordava dos seus cincos parecerem uns pontos de interrogação ao contrário. E isso doía sem o perceber. E nem percebia porque razão a professora insistia com a directora que não lhe tinha batido, nem a tratara mal...
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Recentemente, porém, a pressão fora de outro género e tentara enfrentá-la até já não poder mais. Mas o esforço, via agora, tinha sido contraproducente e arrastara-a ao desespero.
E esse desespero vivia agora dentro dela e obrigava-a a fugir à banalidade e ao lugar comum. E a desejar um pouco mais de altura no seu dia a dia.
Mas um passado recente e muito sofrido tanto na alegria quanto na dor não se pode apagar. Nunca se pode apagar.
Mas disso só ela sabia.

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