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domingo, 14 de maio de 2017

Conquistar a distância...


 Ontem foi um dia em que regressei no tempo como catraia, sofrendo com o concurso da Eurovisão, um tempo em que dizer Europa era algo estranho, pois quase que nem acreditávamos pertencer-lhe... Contudo, recebíamos os estrangeiros com delicadeza e uma quase reverência porque pertenciam a um mundo a que nos sentíamos alheados não só ao nível político como cultural e, ainda hoje, há muito boa gente que acha que lá fora tudo é bom e, por cá, nada que preste.
Entre nós, quem frequentasse o estrangeiro ou era muito rico ou tinha atravessado a fronteira a salto para aí trabalhar em tarefas de quase escravatura,a  ganhar sem quase gastar para depois regressar à santa terrinha, dinheiro esse dificilmente auferido na pátria ao longo de uma vida de árduo esforço. Mas sabia-lhes bem passar alguns períodos de descanso mostrando aos familiares e amigos que por lá se vivia desafogadamente... embora se fosse tratado como cidadãos de segunda, ou de terceira categoria. 
Adormeci tarde pensando em tudo isto e no tempo em que possuir televisão era só para alguns e nos reuníamos então em casa de vizinhos e amigos mais afortunados para olhar o quadradinho milagroso e sofrer em coro quando o Eusébio falhava o golo pela selecção ou os nossos compositores e intérpretes na Eurovisão, por melhores e mais inspiradas canções que apresentassem, passavam desapercebidos e ignorados. E sofríamos a desilusão por não sermos tão bons quanto os outros, ou não possuirmos meios económicos capazes de ombrear com eles, convencidos como estávamos que muitas daquelas vitórias  eram conquistadas a troco dos muitos milhões envolvidos em encómios e muita publicidade. 
 Consolávamos-nos, no dia seguinte, trauteando sobretudo as canções vencedoras porque essas, sim, essas é que eram boas, apesar dos entendidos na matéria de cá e alguns de lá afirmarem o contrário. E anos e anos a fio, isto se repetiu até que se passou praticamente mais de uma década em que se pensou que o festival, pelo menos por cá, caíra no esquecimento. Como tal deixou de mobilizar as massas anónimas, na época as mais entusiastas do evento.
Mas, a pouco  pouco, emergiu uma geração que começou a valorizar o nosso património cultural, incluindo o musical:o reconhecimento do fado como património da humanidade abriu caminho para o do  cante alentejano e começou a encher de orgulho os corações portugueses, aqui e além fronteiras, com a consciência de que, afinal, nem somos tão comezinhos e analfabetos em muita e muita coisa como pensávamos . Os nossos créditos, tanto em ciência, como em tecnologia, começaram a ser reconhecidos mercê do afinco em mostrar que por cá também se sabe das coisas e se trabalha, apesar de não se possuírem os tais muitos milhões que, se os há, estão nas mãos só de uns tantos privilegiados descendentes ou ascendentes à classe do grande capital, amealhados sabe-se lá como, conseguidos à custa sabe-se lá de quê e quem. 
E se, em determinada época histórica, os possuímos, aos tais milhões, cedo os desbaratámos em campanhas políticas ruinosas. Apegámos-nos ao marasmo de uma existência pacata e sem ambições e lá fomos sobrevivendo ao longo de séculos. No século XXI descobrimos que somos europeus...
E finalmente, em 2016, ganhámos humildemente o Campeonato e consagrámos-nos  vencedores do Concurso da Eurovisão.

Tudo isto mercê do trabalho e do talento de dois irmãos unidos pelo amor à música e entre si.
Resta-me agradecer-lhes os momentos de ânsia ontem revividos  por mim e muitos outros portugueses espalhados por todo esse mundo europeu e não europeu, assim como a satisfação plena  por essa vitória há tanto almejada.

Obrigados a ambos!

E, citando o imortal e profético Pessoa, murmurar em prece:
[...]
«E que outra vez conquistemos a Distância -
- Do mar ou outra, mas que seja nossa!»

in Mensagem, XII - II PARTE,1921/22

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