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sábado, 19 de junho de 2010

Continuação de VIDA LICEAL...em anos 50




- Bem, meninos - continuava daí a pouco a voz altissonante do dr. Simões - vocês vão experimentar os trajes, as barbas e os bigodes que estão aí encaixotados e vieram hoje do Porto. Podem ir lá abaixo aos camarins da Ginástica vestir-se. Depois de arranjados, venham para cima, que ensaiam já vestidos para fixarmos posições em cena.

Não tardou que, perante o gáudio de todos os presentes, surgissem do caixote capas, um chapéu de abas largas, túnicas, um vestido de dama do século XVII, uma touca com pérolas de fantasia e enfeites de ouropel, uma cabeleira grisalha de frade,com larga e redonda tonsura, umas barbas longas e bigodes igualmente brancos, longos e descaídos para a personagem do Romeiro, uma alva e comprida cabeleira para o mesmo e outras maravilhas.

De acordo com as instruções, os jovens que interpretavam as cenas da peça garrettiana desceram à cave do ginásio do liceu onde se encontravam os balneários e, pouco mais de um quarto de hora depois, surgiram nas figuras mais ridículas que se possa imaginar...

Henrique trazia , colocada às três pancadas, a cabeleira de frade que não lhe entrava totalmente na cabeça e vestia uma túnica branca de cabeção redondo e ainda uma espécie de casula preta por cima. Porém, a túnica estava curta e, como ele era bastante alto, descobria-lhe as calças logo abaixo dos joelhos. Por cima de tudo isto, envergava ainda uma capucha escura que lhe caía fradescamente pelas costas e, à laia de remate, ainda uma ampla capa castanha que veio depois a descobrir-se fazer parte do traje de Carlos Simões. Por sua vez, este ostentava a barba e os bigodes brancos e a longa cabeleira de romeiro que lhe deixava à mostra as suíças longas e o começo do seu próprio cabelo muito preto e ondulado. Envergava uma túnica larguíssima de um grosso pano castanho, trazia um chapeirão desabado numa mão e, com a outra,retorcia os grandes bigodes brancos, queixando-se:
-Sr, doutor: falta-me o bordão...

Atrás dele, o Zé Luís e o Jorge riam perdidamente.

O dr. Simões não pôde deixar de rir também.

- Pois... Isto está muito mal, está.Tu, Henrique, tens de fazer com que a cabeleira te entre na cabeça. Ora deixa cá ver...Hum...não entra. Estamos mal, rapaz.

- Ó sr.dr., - lamentou-se Henrique, muito sério, apalpando a cabeça - Isto faz-me aqui um alto danado...

E, de facto, todos repararam, intrigados, que havia um alto na cabeça do pobre coitado...

Então o Zé Luís arrancou-lhe a cabeleira e logo exibiu, muito divertido, um bigode grisalho retirado das profundezas da mesma. Soaram novas e irreprimíveis gargalhadas e, desta vez, a cabeleira passou a assentar melhor na cabeça do Henrique.

- O bigode não te fica bem - observou o dr. Simões, apreciando o efeito no rosto do rapaz. E concluiu: - Ficas mais frade sem bigode.

Sempre trocista, o Zé Luís, do lado, não se conteve:
- E mesmo esse bigode parece uma vassoura...

Também se chegou logo à conclusão que a bainha da túnica de Henrique tinha que ser descida e de que Carlos precisaria de enfarinhar as suíças no dia da récita, assim como as sobrancelhas, porque estas davam demasiado na vista em contraste com o bigode, barbas e cabeleira de um branco amarelado. E necessitava de um bordão de peregrino, também...
Foi a vez de uma das raparigas se prontificar a arranjar-lho.
Já com Lola tudo estava ajustado. O vestido parecia ter sido feito por medida e só seriam necessárias umas tranças postiças para encher o toucado.Lola explicou que, por um acaso feliz, conservara as suas tranças louras de criança dentro duma caixa pelo que o professor concluiu que estava assim tudo mais que acertado.

O ensaio continuou então sem incidentes de maior até ao final do episódio lancinante da saída de cena de Dona Madalena de Vilhena em que Carlos Simões se viu interpelado ansiosamente por Henrique, no papel de Frei Jorge. Ao grito de: "Romeiro! Romeiro! Quem és tu?!", o rapaz respondeu , muito pacífico, meio distraído, torcendo pachorrentamente as longas guias do bigode branco: "Ninguém...."

Uma gargalhada geral acolheu esta fala de um fim de acto isento da tragicidade requerida e o dr. Simões ordenou a repetição imediata daquela cena e só depois deixou os jovens sair em paz.

Na verdade, nunca aqueles ensaios foram - e assim continuaram - isentos da melhor disposição.

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- Ó Kaety! Nem calculas como foi divertido! Os rapazes estavam malucos de todo e nós fartámo-nos de rir!

Este era o comentário da Clara para uma Catarina um pouco pálida e com uns círculos azulados sublinhando-lhe os olhos claros. E continuou perante o pouco entusiasmo da amiga:
- Hoje vais ao ensaio, não vais?

- Olha que não sei! Se não me doer a cabeça, vou. O que menos me importa, neste momento, é o ensaio.

Catarina conservava no regaço um livro volumoso de capa vermelha que ostentava em enormes parangonas douradas o título: Compêndio de Geografia e sobre o qual logo se debruçou a estudar.

- Mas olha que nós divertimo-nos mesmo muito - tagarelava a Clara - O dr. Simões é um homem que está sempre bem disposto e com quem nos sentimos à vontade e rimo-nos à farta.

Contra o habitual, Catarina sentia-se, nesse dia, com fraca disposição para aconversa e continuou de cabeça pendida sobre o livro, esperando que a amiga se calasse.. E como, passados alguns minutos, visse que tal não era possível, resolveu levantar-se do banco em granito do recreio coberto onde se encontrava sentada.
- Vou procurar a Isabel. Já venho.

-Queres que vá contigo?

- Não, não é preciso. Obrigada..

E afastou-se, com o grosso volume vermelho debaixo do braço, onde se destacava pelo contraste com a manga da bata muito branca.

Sentia-se estranha.Ela, que até se preocupava pouco com o estudo, passara a estudar com afinco. Deixara de se entusiasmar com tudo o que antes de adoecer mais a interessava. Numa palavra, e no parecer das colegas que lhe eram próximas, continuava enferma de alma. Havia até quem insinuasse que se tinha apaixonado, o que era natural numa rapariga de quinze anos tão cheia de vida como era Kaety - comentavam elas.
Só que não sabiam qual seria o objecto dessa paixão, porque Kaety tinha muito pouco de leviana.

E, nessa altura, não era mesmo de amor que a Catarina sofria.

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